Há oito décadas, Getúlio
Vargas liderava a consolidação do trabalhismo por meio de instituições
simbólicas desta corrente ideológica como o Ministério do Trabalho e a Justiça
do Trabalho, além do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fundado em 1945.


Por BBC BRASIL – Mas o princípio de 2018 vem mostrando como, com o passar do
tempo, o mesmo PTB se descolou de suas origens ideológicas. Em meados de
janeiro, o presidente atual da sigla, Roberto Jefferson, defendeu ao jornal
Folha de S~qo Paulo a extinção da Justiça do Trabalho, formada durante o Estado
Novo. Jefferson classificou-a como uma “excrescência brasileira” e
uma “babá de luxo”.

Enquanto isso,
sua filha, a deputada federal pelo PTB Cristiane Brasil, fez referências à
Justiça do Trabalho em um vídeo publicado nesta segunda-feira.

Nele, ao lado de
quatro amigos em um barco, a parlamentar se defende das acusações abertas por
dois ex-funcionários na Justiça do Trabalho, onde foi condenada. Em meio a
embates judiciais e políticos, as denúncias trabalhistas contra Cristiane
Brasil vêm impedindo que ela assuma o Ministério do Trabalho, cargo ao qual foi
indicada pelo presidente Michel Temer no início do mês.

“Todo mundo tem direito de pedir qualquer coisa na Justiça.
Todo mundo pode pedir qualquer coisa abstrata. O negócio é o seguinte: ‘Quem é
que tem direito?’. Ainda mais na Justiça do Trabalho. Eu, juro pra vocês, eu
juro pra vocês, que eu não achava que eu tinha nada para dever para essas duas
pessoas que entraram (com processos)”, diz a deputada no vídeo.

Para estudiosos da história política brasileira consultados pela
BBC Brasil, os episódios recentes, além do posicionamento do partido em pautas
como a reforma trabalhista, mostram que, do “trabalhismo”, o PTB
atual só mantém o nome.

“Da minha
perspectiva, o PTB não existe mais. Existe a sigla, mas não o seu sentido
original. O partido deu recentemente provas inequívocas do seu descompromisso
com essa tradição política”, diz a historiadora Angela de Castro Gomes,
professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). “Os mais importantes líderes do PTB
estariam se revolvendo no túmulo ao olharem para o partido atualmente”.

Em nota, a
assessoria de imprensa do partido atual afirmou que a sigla “mais do que
nunca” defende os direitos dos trabalhadores na política.

“O PTB luta
pelos trabalhadores sem voz e que pagam a conta da deformação das relações de
trabalho”, diz a nota. “O PTB foi e é um partido reformista e de
vanguarda, está à frente de seu tempo, entende as aspirações da classe
trabalhadora, da classe média urbana e do mundo rural”.

Para entender os
caminhos do partido, é preciso voltar para alguns dos momentos mais importantes
da política brasileira, como o Estado Novo, a ditadura militar e a
redemocratização.

Era Vargas

Com a Revolução de
1930, Getúlio Vargas assume a Presidência do país. Em 1937, instaura
autoritariamente o Estado Novo, que até 1945 vai ser marcado por políticas como
a unicidade sindical, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a criação da
Justiça e do Ministério do Trabalho – este particularmente fundamental para a
projeção do trabalhismo e posterior fundação do PTB, em 1945.

João Trajano de
Lima Sento-Sé, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (Uerj), indica que o partido, embora em sua origem tenha sido o
“primeiro grande partido de massas do Brasil”, continha ambivalências
que foram exacerbadas nas décadas recentes.

“Por um lado,
sem sombra de dúvidas, o PTB foi o partido que melhor conseguiu encarnar, de
1945 a 1964, as questões dos trabalhadores e sindicalistas a ele filiados. Ele
foi a grande sigla de atuação político-partidária da esquerda neste
período”, afirma Sento-Sé. “Mas o PTB não era um partido
exclusivamente de trabalhadores. Havia segmentos residuais conservadores,
ligados às classes médias urbanas e que formavam uma certa burocracia
partidária”.

Com o suicídio de
Vargas em 1954, o partido se vê diante de um esforço de renovação e competições
internas – mas, ao longo da década seguinte, conquista significativos ganhos
eleitorais. O petebista João Goulart, que assume a presidência em 1961, após a
renúncia de Jânio Quadros (à época, presidente e vice eram eleitos em pleitos
separados), dá continuidade ao projeto trabalhista herdado de Vargas.

Mas, com o golpe militar de 1964, o PTB passa a ser o principal
alvo, entre os partidos, da repressão. Em 1965, a sigla, entre outras, é
dissolvida pelo Ato Institucional nº 2 (AI-2).

Redemocratização

Em meio à abertura política na transição entra as décadas de
1970 e 1980, o PTB se torna alvo de uma disputa judicial por sua titularidade.
Competem pela sigla grupos liderados por Ivete Vargas (sobrinha de Getúlio), de
um lado, e Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul e deputado
federal pela Guanabara, que representava a ala mais à esquerda do partido.

Em 1980, por decisão da Justiça Eleitoral, o PTB fica com Ivete
Vargas. Brizola, então, funda o Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Segundo Sento-Sé, enquanto Brizola era identificado pelos
trabalhistas históricos como o herdeiro legítimo ao PTB, Ivete Vargas era
tributária dos setores mais conservadores do partido – tendo trânsito,
inclusive, entre os militares.

“O processo de redemocratização foi controlado pelas elites
vinculadas aos militares de forma que o poder não escapasse destas mãos. O
trabalhismo era o grande fantasma e tinha um nome singular que assustava
especialmente: o de Brizola”, diz o cientista político. “Os setores
conservadores influenciaram decisivamente na vitória judicial de Ivete Vargas.
É historiograficamente aceito que a decisão judicial teve clara influência dos
militares”.

De acordo com Sento-Sé, tal “renascimento” do PTB logo
o batiza como um partido conservador – e a herança de Vargas e do trabalhismo
acaba sendo associada ao PDT de Brizola.

“Quem ganha a competição pelo legado histórico e pela
relevância política é o PDT. Isso mostra que a sigla é importante, mas mais
ainda é o que ela vai encarnar e defender”, aponta Castro Gomes.


Ressignificando a
história

Comunicados oficiais e recentes no site do PTB, porém, defendem
um alinhamento entre a atuação atual do partido e suas origens históricas.

Alguns deles, por exemplo, fazem referência ao passado do
trabalhismo na defesa da reforma trabalhista – uma das principais pautas do
governo Temer, aprovada no Congresso e sancionada em 2017.

“O PTB tem a identidade de raízes, de pregação doutrinada,
nos primados trabalhistas de Getúlio Vargas. Cremos nesse sindicalismo, no
movimento do trabalhador e na inspiração judaico-cristã. Somos cristãos e
cremos nesse tipo de organização e na busca da conquista por meio do diálogo.
Nós não somos socialistas. O PTB foi construído para ser um partido
trabalhista, diferente daquele que prega a ditadura do proletário”, diz
Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, em um comunicado de março de 2017.

“Ao contrário do que dizem, a lei de modernização da
legislação trabalhista representa um avanço para o Brasil. Ela não tira
direitos nem é um retrocesso, ao contrário, é a garantia de um Brasil moderno,
competitivo e próspero”, indicou Jefferson em outro comunicado.

O PTB é parte da base aliada do governo Temer: o primeiro a
ocupar o Ministério do Trabalho na gestão foi o petebista Ronaldo Nogueira.
Este então abriu espaço para que a correligionária Cristiane Brasil assumisse a
pasta – nomeação essa suspensa temporariamente pela presidente e ministra do
Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia.

Bastidores de Brasília indicam que Temer está acatando a
insistência – e decorrente desgaste – pela nomeação de Cristiane Brasil a troco
do apoio de Jefferson e do PTB à reforma da Previdência.

Nos governos dos petistas Lula (2003-2011) e Dilma Rousseff
(2011-2016), o PT e o PDT se alternaram na titularidade do ministério.



‘Inverso do
trabalhismo’

Para Castro Gomes, a aprovação da reforma trabalhista e os ataques
à Justiça do Trabalho são expressões da guinada conservadora no PTB.

“Uma das instituições fundamentais na lógica original do
partido é a própria Justiça do Trabalho. Segundo essa lógica, a intervenção do
Estado no mercado de trabalho é necessária diante da ideia de que empregados e
empregadores não têm a mesma força, mesmo com a organização de
sindicatos”, diz a historiadora. “O que vamos ver, principalmente no
governo Temer, é uma reversão disso. Uma primeira grande mudança é que o
negociado passa a se impor sobre o legislado. Isso é o inverso exato da lógica
do trabalhismo”.

Ainda assim, segundo a pesquisadora, as referências ao passado
do partido seguem como capital político.

“Os usos que o PTB de hoje faz do PTB de antes é
evidentemente uma estratégia retórica de se beneficiar da sua origem
histórica”, aponta.

Para Sento-Sé, o governo atual também se beneficia do legado
histórico do PTB.
“Em governo conservadores, quando o PTB tem algum poder na
composição governamental, há a demanda pelo Ministério do Trabalho. Em um
contexto como o de hoje, de um governo conservador, relativamente isolado
politicamente, que não conta com a capacidade de recrutamento de quadros
relevantes na política nacional, o PTB faz valer sua expectativa de reforçar o
seu legado trabalhista”, afirma o cientista político.

“Hoje, quando há episódios como estes recentes, do ponto de
vista historiográfico não há nada que surpreenda. Já na sua reconstituição, o
PTB ressurge como um partido conservador que sobrevive à custa de alianças fisiológicas
e sem base social”.


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