Desembargador
do Tribunal de Justiça de Alagoas, Tutmés Airan de Albuquerque Melo é um
magistrado diferente de boa parcela dos que conhecemos por aí: não é
corporativista. Costuma falar em nome da razão e dos seus estudos sem recorrer
ao velho dilema dos colegas que se travam para não se indispor com colegas –
mesmo violentando a consciência – quando não, o direito. Neste artigo ele
mergulha em documentos e publicações nas quais aponta um conjunto de erros que
revelam a partidarização do judiciário brasileiro – uma praga que pode custar a
nossa democracia. Leia aqui.

Por Tutmés Airan de Albuquerque Melo*

A guerra política instaurada no Brasil, que pode levar ao impeachment da
presidenta Dilma, tem vários ingredientes. Nenhum deles, talvez, nem mesmo a
atuação da mídia, tem despertado mais polêmica do que as decisões judiciais que
brotam do conflito.

A ideia deste texto é, a partir da análise de algumas dessas decisões, tentar
entender o porquê da polêmica e, entendendo o porquê, refletir sobre as suas
consequências em relação à própria existência do Poder Judiciário e à sua
capacidade de ser, numa crise desse tamanho, um mediador para o conflito.

Mãos à obra.

1ª DECISÃO

A Revista Veja, ano 48, edição nº 44, com circulação no mês de novembro de
2015, em sua capa, estampou uma foto do ex-presidente Lula com trajes de
presidiário, atrás das grades.

Sentindo-se ofendido em sua honra e imagem, propôs ação de indenização por dano
moral contra a Editora Abril S/A, processo distribuído para a juíza Luciana
Bassi de Melo, titular da 5ª Vara Cível do Foro Regional XI de Pinheiros,
Comarca de São Paulo.

Julgando o conflito, inclusive de forma antecipada, sua excelência decidiu que
o ex-presidente Lula não tinha razão.

É certo, como sustenta Kelsen [1] , que decidir é um ato de escolha entre
alternativas possíveis. Isso não quer dizer ou sugerir que o Estado dê um cheque
em branco para o juiz decidir como quiser.

É que, não obstante tenha uma margem considerável de poder para construir a sua
decisão, todo juiz sabe ou pelo menos intui que há interpretações-limite sobre
o sentido e alcance dos textos normativos, a partir das quais tudo o mais não
passa de uma tentativa autoritária de fazer prevalecer a vontade pessoal em
detrimento dos limites impostos pela legalidade.

No caso em análise, embora tenha procurado ancorar a decisão em precedentes
jurisprudenciais, para fazer prevalecer a sua vontade a juíza não hesitou,
inclusive, em falsear a realidade, porque somente a falseando poderia decidir
como decidiu.

Vejamos.

Chama a atenção uma passagem da sentença na qual, enfaticamente, sua
excelência, em mal português, disse que a capa da revista não havia inventado
nada, deturpado ou distorcido notícias a respeito do autor. Como não?!

Colocá-lo na capa de uma revista de circulação nacional vestido de presidiário,
e atrás das grades, é absolutamente incompatível com o fato de que até hoje o
ex-presidente Lula não tem contra si nenhum processo penal em tramitação e
muito menos condenação, mesmo não transitada em julgado, capaz de sugerir ou
indicar que ele poderia ser eventualmente colocado, em consequência de um
processo ou de uma condenação, na condição de prisioneiro.

A toda evidência, pois, a capa da revista não se limitou a narrar ou criticar
um fato real. Antes, criou um fato conveniente aos seus interesses na
perspectiva clara de desconstruir a imagem de um homem que, até que se prove o
contrário, é inocente e como tal deve ser, por imperativo constitucional,
tratado.

Ao não reconhecer o óbvio – a ofensa à honra e à imagem do ex-presidente Lula
-, sua excelência fez imperar uma espécie de justiça particular, ferindo de
morte um dos pilares mais importantes do devido processo legal, segundo o qual
as decisões judiciais devem obediência a regras prévias e democraticamente
postas, limitadoras do poder de qualquer juiz.

A subversão da cláusula constitucional do devido processo legal não parou por
aí. Nota-se que, por mais de uma vez, sua excelência justifica e legitima a
capa da revista Veja, como se ela traduzisse as manifestações populares, no
seio das quais, inclusive, teria havido a criação do boneco “Pixuleco”,
“representando o autor como prisioneiro”.

São conhecidas as relações entre o Direito e as avaliações morais que os homens
fazem sobre suas condutas. Uma delas, a que interessa neste instante, é a de
que, através das normas jurídicas que produz e garante, o Estado deve proteger
as pessoas contra os linchamentos e execrações produzidas apressadamente pela
moralidade média.

Ao não enxergar na atitude da revista qualquer excesso, e ao ancorar a sua
argumentação exatamente naquilo que ela tinha o dever de evitar ou combater,
sua excelência descurou de um compromisso fundante do devido processo, segundo
o qual as pessoas não podem ficar à mercê do juízo moral e de suas
consequências devastadoras.

A propósito, bastaria um simples exercício mental para perceber isso. Um bom
juiz deve se colocar no lugar do outro. Será que sua excelência gostaria de ter
a sua imagem veiculada nas mesmas condições em que a revista retratou o
ex-presidente Lula?

2ª E 3ª DECISÕES

Sexta-feira, dia 4 de março, o Brasil amanheceu em polvorosa: agentes da
Polícia Federal levaram o ex-presidente Lula. De início se imaginou tratar de
uma prisão anunciada. Logo depois, no entanto, constatou-se tratar-se de uma
condução coercitiva que, enquanto tal, teria que ocorrer caso fosse verificada
a hipótese prevista no artigo 260 do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório,
reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a
autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
[.]

Como se vê, não se pode conduzir uma pessoa para depor coercitivamente sem que
ela tenha sido previamente convidada para tal e, em consequência desse convite,
se recusado a fazê-lo. Aqui, por mais que se queira dar asas à imaginação, não
cabe outra interpretação: ir depor sob “vara” pressupõe resistência
injustificada a um chamamento da justiça.

Eis que logo se descobriu que o ex-presidente Lula não tinha sido previamente
convidado a depor, não se podendo obviamente dizê-lo resistente a um convite
que não houve. O que então justificaria uma condução coercitiva?

Instado a se explicar, o juiz Sérgio Moro, responsável pelo mandado de condução
coercitiva disse que a determinou em nome da busca da verdade e “para
evitar tumultos e confrontos entre manifestantes políticos favoráveis e
desfavoráveis ao ex-presidente”. Acontece que sua excelência, a pretexto
de lançar mão da prerrogativa contida no artigo 260 do CPP, o fez de forma
absolutamente divorciada de sua hipótese legal legitimadora.

Sua excelência, portanto, legalmente falando, não teria essa prerrogativa, no
caso, exorbitando, consciente e deliberadamente, de seu poder, desprezando, tal
como na decisão anterior, os marcos normativos pública e democraticamente
estabelecidos, para, autoritariamente, fazer prevalecer a sua vontade. Como
disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, comentando a
decisão de condução coercitiva, o juiz estabeleceu “o critério dele, de
plantão”.

Por melhores que sejam os propósitos, um juiz não pode decidir contra o sentido
unívoco da lei, sobretudo porque a mensagem não deixa margem a qualquer dúvida.
Como disse o referido ministro, “não se avança atropelando regras
básicas”. Afinal, mais dia menos dia, “o chicote muda de mão”, e
também de alvo.

Sua excelência, portanto, negou submissão às regras do jogo [2] , agindo fora
dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico, afrontando, assim como na
decisão anterior, regra basilar do devido processo legal.

Como se isso não bastasse, e em nova afronta ao devido processo legal, expôs de
modo desnecessário e vexatório o ex-presidente, quando seria do seu dever
protegê-lo contra a execração pública e midiática.

Com efeito, ao que tudo indica sua excelência queria exatamente isto: que o
ex-presidente Lula fosse execrado pública e midiaticamente. E por quê? Porque,
violando o que estabelecem os artigos 8º e 9º da Lei nº 9.296/1996, que
regulamenta o procedimento de interceptação telefônica, permitiu que conversas
ao telefone feitas pelo ex-presidente Lula viessem a público, inclusive algumas
estritamente privadas que não interessavam à investigação, bem como uma
conversa havida entre o Lula e a presidenta Dilma, cuja divulgação somente
poderia ser excepcionalmente autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, dada a
prerrogativa de foro da presidenta.

É de se imaginar que sua excelência sabia dessas proibições/limitações a ele
impostas pelo ordenamento jurídico, mesmo porque parece ser dotado de bom
preparo técnico. Não obstante, apesar delas e contra elas, resolveu decidir
como decidiu, nesse caso criminosamente. Veja-se o que diz o artigo 10 da lei
acima citada:

Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de
informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização
judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

É que o diálogo entre a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula já foi captado
num momento em que a interceptação, por decisão do próprio Moro, já não poderia
mais ser feita. Contrariando a sua própria decisão, sua excelência não somente
trouxe para o inquérito o referido diálogo como permitiu a sua divulgação. Ao
agir assim, parece ter cometido o crime previsto no artigo 10 acima
referenciado, expondo-se a um risco que racionalmente só se explica se o juiz
tiver objetivos que transcendem o simples ato de dizer e aplicar o Direito na
vida das pessoas, objetivos de resto não autorizados em lei.

E quais seriam esses objetivos?

O primeiro parece ter sido o de indispor o ex-presidente Lula com instituições
respeitáveis e altas autoridades da República, a exemplo do Supremo Tribunal
Federal e da Ordem dos Advogados do Brasil. Veja-se, para ilustrar, o teor dos
diálogos interceptados e revelados:

– Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos uma Superior
Tribunal de Justiça totalmente acovardado, (Conversa entre Lula e a presidenta
Dilma)

[.]

– Amanhã eles vão fazer alguma putaria com o Lula. Terça-feira o filha da puta
da OAB vai botar aqui dizendo que o Conselho da OAB acha que nesse caso. É uma
palhaçada. (Fala atribuída ao ministro Jacques Wagner em conversa com o Lula)

Porque as altas autoridades são humanas e as instituições são compostas por
homens que se ressentem e se ofendem, sua excelência parece ter conseguido o
seu intento, tanto assim que a OAB nacional, que até então se posicionava
contra o impeachment da presidenta Dilma, mudou de posição.

A consciência da ilegalidade da decisão que tomou e os riscos daí decorrentes parecem
ter valido a pena: o ex-presidente Lula e, por tabela, a presidenta Dilma, a
toda evidência, saíram enfraquecidos desse episódio.

O segundo objetivo também parece ter sido plenamente alcançado: a produção de
um massacre midiático no qual diálogos foram manipulados para dar a eles a
serventia que era conveniente, no caso, tentar convencer parte da população de
que o ex-presidente Lula havia aceitado o cargo de ministro chefe da Casa Civil
para, ganhando foro privilegiado, livrar-se de uma prisão iminente e
inevitável, à Sérgio Moro [4].

Novamente, arriscar-se ao ponto de agir criminosamente parece ter valido a
pena: uma parcela da população se convenceu de que o Lula quis ser ministro
para evitar a prisão.

4ª DECISÃO

Inteiramente contaminado por essa perspectiva, um outro juiz entra em cena e,
instado a decidir liminarmente, em sede de ação popular, o Dr. Itagiba Catta
Preta Neto, resolveu suspender a nomeação e posse do ex-presidente Lula na Casa
Civil.

À parte a discussão sobre a verossimilhança dos argumentos utilizados, o fato é
que graças à atuação fiscalizadora de alguns bons jornalistas foram descobertos
dois escândalos.

Na noite anterior à decisão, sua excelência deixou-se flagrar em pleno facebook
participando alegre e entusiasticamente de um ato político em Brasília contra a
presidenta Dilma e a favor do seu impeachment. Na postagem que colocou, além de
sua fotografia na companhia possivelmente da família, sua excelência
ridiculariza a presidenta Dilma, associando-a à imagem de uma bruxa, e, lá para
as tantas, diz que é preciso derrubar a presidenta para que o dólar baixe e
possibilite que pessoas como ele voltem a viajar.

Descoberto, apagou o perfil de sua conta no facebook, num esforço envergonhado
e tardio de diminuir o vexame.

Uma outra descoberta desnudou sua excelência de vez. Analisando o percurso da
ação popular no sistema de automação da Justiça Federal do Distrito Federal,
percebeu-se que, entre o peticionamento e a decisão, transcorreram 28s. Quer
dizer, em 28s o juiz recebeu o processo, analisou o argumento da parte e
decidiu!

Como isto não é humanamente possível, e até por sua declarada opção
político-ideológica, o fato é que a decisão de proibir o ex-presidente Lula de
assumir o Ministério parece ter sido produzida antes de sua excelência conhecer
do processo, como se tivesse sido encomendada [5].

Essas circunstâncias denunciam que sua excelência não tinha, face à sua opção
política, nenhuma condição para decidir a ação popular. Ao fazê-lo, violou
regras elementares que tratam da atividade do juiz, sobretudo aquelas que
impõem o dever de imparcialidade e que disciplinam as hipóteses de suspeição.

Uma pergunta permanece no ar: se sua excelência se sabia suspeito, por que não
se reconheceu enquanto tal? A resposta, tão inquietante quanto óbvia, sugere
tratar-se, uma vez mais, de um juiz que, para fazer prevalecer as suas escolhas
e a sua justiça, opta conscientemente por desprezar regras elementares do seu
mister, desbordando dos limites impostos ao exercício de seu poder.

Que o Supremo Tribunal Federal, numa intervenção pedagógica, possa dar juízo
aos nossos juízes.

NOTAS

[1] Em: Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.

[2] O respeito às regras do jogo, segundo Norberto Bobbio, é que caracteriza o
democrata e a democracia (In O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do
jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 6ª edição. São Paulo: Paz e Terra).

[3] Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá
em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo
criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições
respectivas.

Parágrafo único. [.]

Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão
judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude
de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.

Parágrafo único. [.]

[4] Prisões preventivas que, na grande maioria, servem para a obtenção, pelo
sofrimento, de delações premiadas, ou, então, para materializar condenações
penais antecipadas.

[5] Essa suspeita aumenta porque, em artigo publicado em alguns sites
jornalísticos, mostramos que a decisão foi colocada no sistema 4min19s antes do
processo chegar ao juiz.

*Tutmés Airan de Albuquerque Melo é Professor da UFAL e Desembargador do Tribunal de Justiça de Alagoas

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