Relatório que embasou operação também afirma que a investigação reuniu dados que ‘comprovam’ que o ex-presidente Jair Bolsonaro ‘analisou e alterou’ uma minuta de decreto antidemocrático.

Por Paolla Serra, Patrik Camporez, Sarah Teófilo e Johanns Eller
O GLOBO

O relatório da Polícia Federal que embasou a operação mais recente sobre a tentativa de golpe de Estado mostra que o ex-ministro da Defesa Braga Netto estimulou bolsonaristas a atacarem, em dezembro de 2022, o general Tomás Paiva, hoje comandante do Exército. O documento, a que O GLOBO teve acesso, também revela a atuação do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na trama golpista e afirma que a investigação reuniu dados que “comprovam” que o ex-presidente Jair Bolsonaro “analisou e alterou” uma minuta de decreto que determinava o rompimento constitucional.

A atuação de Braga Netto contra Tomás Paiva foi revelada pela colunista do GLOBO Malu Gaspar. Mensagens apreendidas pela PF mostram que em 17 de dezembro de 2022, cinco dias após a diplomação de Lula, o ex-chefe da Casa Civil relatou ao militar Ailton Barros uma suposta visita de Paiva ao ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas.

Na mira da PF — Foto: Editoria de Arte
Na mira da PF — Foto: Editoria de Arte

No diálogo, Braga Netto afirmou que o colega de oficialato “nunca valeu nada” e tentou vinculá-lo ao PT. O ex-ministro orientou Barros a disseminar uma mensagem repleta de ataques — o que, para a investigação da PF, consistiu em uma tentativa deliberada de “atingir a reputação” do general. Braga Netto acrescentou que o hoje comandante do Exército teria falado mal de todo o Alto Comando da Força.

“Parece até que ele é PT desde pequeninho”, escreveu Braga Netto sobre Paiva. “Nunca valeu nada”, acrescentou. Ainda em referência ao atual comandante, o ex-ministro disse que “a ambição derrota o caráter dos fracos… Aliás, revela”. A troca de mensagens termina com um pedido ao interlocutor. “Pode viralizar”.

Constrangimento

O objetivo da pressão do então auxiliar de Bolsonaro seria constranger oficiais do alto escalão a embarcarem na empreitada que previa manter o grupo no poder e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Na semana passada, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizando a operação já havia mostrado elementos da ação de Braga Netto, como a orientação a ataques ao comandante da Aeronáutica na ocasião, tenente-brigadeiro do ar Baptista Júnior, e em ofensas ao então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes. Braga Netto chega a chamá-lo de “cagão”.

O relatório entregue ao STF também reuniu indícios de que Pazuello, que não foi alvo da operação da semana passada, foi um dos aliados de Bolsonaro que defenderam a ruptura constitucional.

Um dos elementos citados pela PF é um áudio gravado em 8 de novembro de 2022 no qual o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, relata a um interlocutor que o então presidente estava recebendo visitas “no sentido de propor um ruptura institucional” e “pressioná-lo a tomar medidas mais fortes para reverter o resultado das eleições”. Segundo a PF, a gravação foi endereçada “aparentemente” a Freire Gomes.

“O cenário apresentado por Mauro Cid ao general Freire Gomes, na data de 08 de novembro de 2022, já demonstra uma atuação do atual deputado federal, o general Eduardo Pazuello, no sentido de propor uma ruptura constitucional, com fundamento em uma interpretação anômala do art. 142 da Constituição Federal”, afirma a PF.

Desde antes das eleições, vencidas por Lula, grupos bolsonaristas passaram a difundir a ideia de que o artigo 142 da Constituição, que regula o papel das Forças Armadas, poderia ser usado como base para rejeitar o novo governo. A interpretação, já refutada pelo próprio STF, é que o dispositivo autorizaria uma intervenção dos militares como um “Poder Moderador”.

Dados do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) obtidos pela PF confirmam que Pazuello esteve no Palácio da Alvorada em 7 de novembro de 2022 e passou quase 11 horas no local, das 7h30 às 18h20. Cid também estava na residência oficial.

No momento em que Pazuello apresentou a proposta a Bolsonaro, segundo Cid, o então presidente “desconversou e nem quis saber”. Na delação premiada, homologada pelo STF, Cid afirmou, segundo a PF, que Pazuello “integraria o grupo de radicais que queriam reverter o resultado das eleições”. A defesa de Cid afirmou que não pode “emitir conclusões” enquanto não tiver acesso aos autos da operação mais recente.

No mesmo relatório, a PF também afirmou que dados reunidos na investigação “comprovam” que Bolsonaro “analisou e alterou”, em dezembro de 2022, uma minuta de decreto que previa um golpe de Estado. Em outubro do ano passado, o GLOBO mostrou que a PF investigava essa hipótese. De acordo com o inquérito, o ex-mandatário manteve no texto a determinação de prisão de Moraes. A versão anterior, de acordo com a apuração, previa também a detenção do ministro Gilmar Mendes, do STF, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Além prisão de autoridades, o decreto previa a instauração do estado de sítio, medida que depende da aprovação do Congresso e é prevista na Constituição para situações de “comoção grave de repercussão nacional”.

“Ele enxugou o decreto”

De acordo com a PF, em um áudio enviado a Freire Gomes, Cid afirma em 9 de dezembro de 2022 que Bolsonaro estava recebendo “várias pressões para tomar uma medida mais pesada”. O tenente-coronel complementa: “O que ele fez hoje de manhã? Ele enxugou o decreto, né? Fez um decreto muito mais resumido, né?”. Em outro áudio, o ex-ajudante de ordens afirmou que o ex-presidente havia reduzido o texto, fazendo “algo mais direto, objetivo, curto e limitado”.

Para a PF, a mensagem “confirma a existência do decreto” e existem “dados que comprovam” que Bolsonaro “analisou e alterou” a minuta que, “tudo indica, embasaria a consumação do golpe de Estado em andamento”. Embora tenha sido destinatário dos áudios, a investigação aponta que o decreto não teve a “adesão” de Freire Gomes.

Procurada, a equipe de Braga Netto não respondeu até o fechamento da edição. Pazuello, via assessoria, disse que não falaria. A defesa de Bolsonaro negou que ele tenha participado da “elaboração de qualquer decreto que visasse alterar de forma ilegal o estado democrático de direito”.

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