Juiz
Baltasar Garzón, que prendeu o ditador chileno Augusto Pinochet e se tornou tão
conhecido na Europa como Sergio Moro no Brasil, demonstra em artigo indignação
com o que está acontecendo com a democracia brasileira.

Segundo
Baltasar Garzón, “a luta contra a
corrupção é vital e deve ser prioritária em qualquer democracia, mas é preciso
estar atento aos interesses daqueles que pretendem se beneficiar da ‘cegueira’
que supõe a luta em si mesma
“.
O
jurista diz ainda ser “capaz de perceber
o espetáculo oferecido pelo procedimento de juízo político que está em curso
contra a Presidenta Dilma Rousseff e que guarda semelhanças com outros que
foram vivenciados por países como Paraguai e Honduras
Ética Política e Justiça
no Brasil
Partindo da consciência crítica
de quem pertence a um país que em algum momento histórico exerceu o férreo
poder do colonialismo atualmente em debate entre mil contradições e
contrariedades, mas também partindo da firmeza democrática e da convicção de
defender valores universais como justiça, liberdade e democracia, quero
compartilhar com vocês meus sentimentos e algumas reflexões que tenho feito
diante da difícil situação que vive institucionalmente o Brasil.
Sinto profundo pesar em observar
que pessoas que são referências da boa política, defensores dos direitos
sociais, de trabalhadores e daqueles que são os elos mais fracos da cadeia
humana estão na mira das corporações que, insensíveis aos sentimentos dos
povos, estão dispostas a eliminar todos os obstáculos que se lhes apresentem
para consolidar posição de privilégio e controle econômico sobre a cidadania
com consequências graves para o futuro. Nessa dinâmica perversa, os grandes
interesses não hesitam em eliminar política e civilmente aqueles que o
contrariam na defesa dos mais frágeis que sempre foram privados de voz e de
palavra para decidir seus próprios destinos.
Mesmo partindo da perspectiva de
quem não vive o dia a dia da política brasileira, devo dizer que sou capaz de
perceber o espetáculo oferecido pelo procedimento de juízo político que está em
curso contra a Presidenta Dilma Rousseff e que guarda semelhanças com outros
que foram vivenciados por países como Paraguai e Honduras, forjados
institucionalmente por parte daqueles que somente estavam interessados em
alcançar o poder a qualquer preço.
A interferência constante do
Poder Judiciário com o fim de influenciar nesses processos deve cessar. Por
experiência, sei os riscos que representam os jogos de interesses cruzados, não
tanto em favor da justiça e sim com o objetivo de acabar como o oponente
político instrumentalizando a um dos poderes básicos do Estado e fazendo-o
perder o equilíbrio que deve preservar em momentos como este, tão delicados
para a sociedade. O judiciário deve prosseguir suas atuações sem midiatização
política de nenhum tipo, sem prestar-se a jogos perigosos em benefício de
interesses obscuros, distantes da confrontação política transparente e limpa.
A perda das liberdades e a
submissão da Justiça a interesses espúrios pode custar um preço excessivo ao
povo brasileiro. O Poder Judiciário e seus componentes devem resistir e
defender a cidadania frente às tentativas evidentes e grosseiras de
instrumentalização interessada. O objetivo não parece ser, como dizem, acabar
com o projeto político do Partido dos Trabalhadores e seus máximos expoentes,
mas submeter à população de forma irreversível a um sistema vicarial controlado
pelos mais poderosos economicamente.
A luta contra a corrupção é vital
e deve ser prioritária em qualquer democracia, mas é preciso estar atento aos
interesses daqueles que pretendem se beneficiar da “cegueira” que
supõe a luta em si mesma. A justiça deve manter os olhos completamente abertos
para perceber o ataque ao sistema democrático que é perceptível na realização
de uma espécie de juízo político sem consistência nem base jurídica suficiente
para alcançar legitimidade e que somente busca tomar o poder por vias tortuosas
desenhadas por aqueles que deveriam defender os interesses do povo e não os
próprios. Ou ainda daqueles que nunca disputaram eleições e que pretendem
substituir a vontade das urnas, hipotecando o futuro do povo brasileiro.
A indignação democrática que
sinto ao acompanhar os fatos do Brasil, país pelo qual tenho imenso apreço, me
provoca profunda dor e ao mesmo tempo me compele a expressar esses sentimentos
diante daqueles que não têm pudor em destruir as estruturas democráticas que
tanto tempo levaram para serem erguidas, aqueles que não hesitam em interferir
na ação da Justiça em benefício próprio.
Ninguém conquista um reino para
sempre e o da democracia deve ser conquistado e defendido todos os dias frente
aos múltiplos ataques e isso se faz desde os mais recônditos lugares do país,
de uma mina, uma pequena fábrica, do interior da Floresta Amazônica já tão
atacada e deteriorada por interesses criminosos, das redações dos periódicos ou
plataformas televisivas que servem de tentação à submissão corporativa, das
ruas das cidades e dos púlpitos das igrejas, das favelas e dos conselhos de
administração das empresas, das universidades, das escolas, em cada casa da
família brasileira é preciso lutar diuturnamente pela democracia. E é obrigação
de todas e todos fazer isso não somente em seu país, mas também fora, em
qualquer lugar, porque a democracia é um bem tão escasso cuja consolidação é
missão do conjunto de toda a comunidade internacional.
Tanto o presidente Lula da Silva,
a quem conheço e admiro, como a presidenta Dilma Rousseff, com quem nunca
estive pessoalmente, representaram o melhor projeto em termos de política
social e inclusiva e que, caso tenham incorrido em irregularidades, merecem um
juízo justo e direito básico à ampla defesa e não um julgamento ilegítimo em
praça pública realizado por quem não tem direito nem uma posição ética para
fazê-lo. O povo brasileiro nunca perdoará o ataque frontal à democracia e ao
Estado Democrático de Direito.
Madrid, 24 de abril de 2016

Por Baltasar
Garzón Real, jurista, magistrado e advogado espanhol
(Tradução Carol Proner)

Deixe um comentário

Copy link