Sob o risco de perder a proteção após 18 anos, Odilon de Oliveira cogita
virar político ou se mudar para a Romênia

 

Por ALINE RIBEIRO – ÉPOCA
O juiz federal Odilon de Oliveira destranca uma
gaveta de documentos sigilosos e retira um livro de capa dura preta, com letras
douradas. O ar condicionado congelante de sua sala ameniza os 37 graus de
temperatura em Campo Grande naquela tarde de sexta-feira. No calhamaço de quase
300 páginas, escrito e encadernado por ele, Odilon guarda uma compilação de
provas e memórias das ameaças de morte mais bem arquitetadas que sofreu em seus
30 anos na magistratura federal. “Esse seboso aqui eu condenei”, afirma, sem
esconder o orgulho, depois de deslizar o dedo pelo sulfite e parar no nome de
um dos traficantes.

 
Folheia a obra com agilidade e aponta mais um, depois
outro e mais outro – e assim se alonga por mais de uma hora, revisitando as
histórias de cada um de seus algozes que acabou por prender. Ao cruzar com um
bilhete embalado num plastiquinho e grampeado numa folha – uma ameaça do
traficante Jorge Rafaat Toumani, na época considerado o “rei da fronteira” –,
apressa-se: “Está vendo aqui? A vagabundagem me chama de Odi”, diz, mostrando
seu apelido no papel. “O cabra escreveu de próprio punho e mandou me
entregar. Naquela época, minha cabeça valia só uns R$ 500 mil. Eu ainda
era barato.” Solta uma gargalhada.
Aos
68 anos recém-completados, doutor Odilon, como todos o conhecem, é um dos mais
temidos juízes brasileiros que trabalham no combate ao narcotráfico. Sua
trajetória profissional coleciona condenações dos mais influentes traficantes
de drogas com atuação na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolívia. Mandou
prender o carioca Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. E o
paranaense Luiz Carlos da Rocha, o Cabeça Branca, considerado pela Polícia
Federal o maior narcotraficante internacional do país.
Em
suas três décadas como juiz federal, Odilon não só colocou na cadeia algumas
centenas de criminosos, como também esvaziou as contas bancárias das
quadrilhas. “Se você só prende, os bandidos continuam mandando lá de dentro e,
quando saem, usufruem de tudo aqui fora. Se você confisca os bens, dá um duro
golpe na espinha dorsal da organização. Ela fica sentada no chão como um João
Sem Terra, não se levanta nunca mais”, afirma. Confiscou 282 imóveis do crime,
761 veículos e 27 aeronaves – parte deles vendida em leilões por um total de R$
27 milhões. Seu legado como juiz, entretanto, ficará por aqui.

No
final de fevereiro, Odilon anunciou no Facebook que vai se aposentar. Pediu a
contagem do tempo de trabalho e agora espera o término do trâmite, previsto
para meados de setembro. “Já queria ter parado há uns dois anos, mas preciso
antes resolver minha segurança. Se sair na rua sozinho, tomo uma surra de
porrete”, diz. “Virei refém da toga.” Odilon é o único juiz do Brasil que conta
com uma operação permanente da Polícia Federal (PF). Há 18 anos, é acompanhado
24 horas por dia, sete dias por semana, por uma escolta armada com pistolas e
submetralhadoras. Sua casa é monitorada por câmeras de segurança. O carro que
usa, um SW4 prata, tem uma blindagem que suporta tiros de fuzil. Assim que
parar de trabalhar, Odilon deverá perder todo esse aparato. A portaria do
Ministério da Justiça que trata da segurança de autoridades, de 8 de janeiro de
2001, não menciona casos de aposentadoria. Procurada, a PF afirmou que ainda
não tem uma definição sobre esse caso.
Odilon
debocha da “vagabundagem”, mas conhece bem seu poder de retaliação. Já esteve
na iminência da morte em pelo menos dois atentados. O mais grave ocorreu em
2005. Num hotel do Exército em Ponta Porã, uma cidade de Mato Grosso do Sul na
fronteira com o Paraguai, Odilon dormia numa madrugada de abril quando foi
acordado com tiros. “Os estampidos estavam tão próximos que pareciam ser dentro
do quarto. Pá-pá-pá-pá-pá”, diz. “Fiquei quietinho, com receio.” Odilon nunca
diz que tem medo. Receio é o mais perto de medo que admite ter sentido.
Na
mesma época, traficantes da região formaram um consórcio para assassinar
Odilon. Cada um dos chefões do crime deu uma quantia de dinheiro. O juiz estava
em Ponta Porã para dar vazão aos processos judiciais acumulados. Passou uma
temporada de pouco mais de um ano. Por três meses dormiu no próprio Fórum, que
se tornou uma espécie de bunker para acomodá-lo. Num colchonete no chão
iluminado por um abajur, passava madrugadas estudando as ações e tomando
uísque. A bandidagem enlouqueceu.

 

O
brasileiro de origem libanesa Jorge Rafaat Toumani, assassinado com uma
metralhadora .50 numa ação cinematográfica no ano passado, era um dos que
compunham o consórcio. O bilhete mandado por ele, do qual Odilon zombou naquela
tarde de sexta-feira em seu gabinete, foi um entre dezenas de recados. A organização
criminosa paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) já ofereceu R$ 1,5 milhão
a quem entregasse Odilon morto. A facção carioca Comando Vermelho (CV) afirmou
que pagava R$ 2,5 milhões, segundo investigações da polícia brasileira. Odilon
é uma unanimidade, capaz de unir concorrentes como Rafaat, PCC e CV.
Diante
de tantas notícias de ameaças, Odilon já acabou sendo dado como morto. Em 2006,
recebeu um convite para participar de uma solenidade no Espírito Santo. Só no
decorrer do evento percebeu o equívoco. Todos os homenageados haviam morrido no
exercício de sua profissão: o jornalista Tim Lopes, a missionária americana
Dorothy Stang, o juiz corregedor de Presidente Prudente José Antonio Machado
Dias… Odilon era o único vivo. “Eu mesmo fui receber minha homenagem póstuma.
Achei um barato, sabe?”
Desde
que pediu proteção à Justiça Federal, em junho de 1998, Odilon vive
enclausurado como os traficantes que manda prender. Sonha sempre que pula o
muro e foge da escolta, e depois acaba por se arrepender. Odilon nunca entra
numa sala imediatamente depois de abrir a porta – assim que gira a chave, um
agente se antecipa para se certificar de que não há ninguém à espreita. Depois
que passou a andar na companhia dos policiais, nunca mais visitou a mãe, já
falecida, na tentativa de preservá-la. Pagava um táxi para ela ir até ele.
Os
prazeres mais simples se tornaram um suplício. Odilon costumava correr na rua
toda semana, até que os policiais descobriram um plano para matá-lo no trajeto.
Passou a usar a pista de um quartel do Exército. Mas a burocracia para recebê-lo
era tamanha – o pedido era feito via ofício, e a resposta com a liberação vinha
cerca de um mês mais tarde – que ele capitulou. Corrida agora é só na esteira
de casa ou na academia. “Entrei nessa academia há quase 30 anos, meu convívio
social é ali”, diz. A Polícia Federal recomendou a Odilon cortar também as idas
à academia, um padrão de rotina perigoso. Por ofício, Odilon respondeu que não
obedeceria. “Então vou comprar um carro-forte e me trancar dentro…”, afirma.
A
família também paga um preço alto. Odilon é casado com Maria Divina há 42 anos.
Tem uma filha e dois filhos, todos formados em Direito. A menina mora em São
Paulo, longe das ameaças. O do meio, numa residência colada à dos pais, também
monitorada. O mais novo nunca mudou de casa. Odilon e a mulher nunca mais
puderam frequentar as aulas de polca paraguaia, uma dança popular na região da
fronteira, programa que adoravam. Pelo volume de trabalho, o casal tampouco
consegue viajar. O lugar mais distante em que já estiveram é a Argentina.
Os
amigos também foram rareando. Para as poucas festas que oferece em sua casa,
Odilon convida somente autoridades, como generais e o governador. No casamento
de um dos filhos, Odilon tirou a mulher para dançar e se viu cercado de casais
de policiais à paisana rodopiando ao redor. Precisavam proteger o juiz, mas sem
chamar a atenção dos convidados. O juiz passa sábados e domingos às voltas com
processos. Vez ou outra, vai ao shopping e deita na rede em casa para ler
(adora literatura policial, mas não está lendo nada no momento).

Até a mais elementar atividade diária requer cautela. Odilon quase nunca come
fora de casa. Sua alimentação é preparada pela empregada, e ele leva todos os
dias uma marmita para a Justiça Federal. O cuidado tornou-se necessário depois
que a PF descobriu um plano para envenená-lo. Os traficantes tentaram subornar
soldados do Exército nos tempos em que Odilon morava em Ponta Porã para batizar
sua comida.
Odilon
é conhecido pelo estilo linha-dura com os bandidos. Durante um julgamento no
começo de março, na 3ª Vara de Mato Grosso do Sul, ouviu por cerca de três
horas dois investigados por tráfico de drogas. Seu tom de voz era o mesmo de
quando trava uma conversa cordial. Odilon tampouco alterou as expressões
faciais. Contudo, foi tão detalhista nos questionamentos que parecia difícil
engambelá-lo. O primeiro suspeito começou negando o crime. Aos 12 minutos,
confessou. Aos 44, caiu no choro. O segundo réu respondeu a 53 perguntas de
Odilon num período de dez minutos. Acabou também por confirmar sua participação
no crime.
Antes
de condenar alguém, Odilon coloca a vida do réu sob rigoroso escrutínio. No
auge das grandes operações na fronteira, autorizava mais de 1.000
interceptações telefônicas por mês durante as investigações. Sua lealdade aos
policiais federais, parceiros na missão, é notável. Certa vez, um delegado
novato proibiu os agentes de se encontrar com Odilon para atualizá-lo do
andamento dos casos. Queria ele próprio se reunir com o magistrado. Odilon
sentou-se diante do delegado e disparou questionamentos. Sem resposta para boa
parte deles, o delegado levou um sermão e os policiais retornaram.

O perfil duro vem da criação. Seus pais, agricultores de subsistência da
pequena Exu, no sertão de Pernambuco, deram aos oito filhos uma educação
rigorosa. “Lembro deles dizendo para a gente nunca pegar no alheio”, diz. Como
inúmeros nordestinos, sua família migrou para o sul para fugir da seca. Viajou
de pau de arara, comendo banana e farinha. Odilon tinha só 4 anos na época, mas
até hoje preserva um forte sotaque pernambucano. O nome de sua cidade natal ele
pronuncia com um acento imaginário no “e” (É-xu).

Assim
que chegou a Mato Grosso do Sul, a família comprou um pedaço de terra. Odilon
ia para a roça durante o dia e à noite estudava numa escola improvisada no
quintal. Um conhecido com primário completo ensinava a lição às crianças sob a
luz de uma lamparina. A geração de Odilon foi a primeira da família a conhecer
as letras. O pai só sabia assinar o nome; a mãe, nem isso. Quando aprendeu a
ler, Odilon reunia os parentes e lia literatura de cordel em voz alta. Treinava
a leitura e ainda os entretinha.
A
convite de um primo vereador, Odilon saiu da colônia para estudar na cidade. O
primo despertou no menino a vontade de cursar uma faculdade de Direito. “Meu
primo contava causos de advogado que soltava preso. Então pensei: ‘Quero ser
isso aí’”, diz. Seu mundinho se abriu. Já na faculdade, descobriu que, além de
soltar, poderia mandar prender. Começou a sonhar com a magistratura.
É
assim, numa constante expansão de horizontes em mundos recém-descobertos, que
Odilon escolhe seus objetivos de vida. Depois de dois anos como advogado,
passou no concurso para procurador federal (em 2º lugar). Depois para promotor
de justiça (em 10º). Então para juiz estadual (em 2º). E, por fim, para juiz
federal (em 19º). Com a altivez de quem reconhece o longo caminho que
percorreu, Odilon faz questão de enfatizar suas boas colocações nos concursos
ao relembrar sua trajetória.
Odilon
é declaradamente vaidoso, um dos poucos prazeres que ainda consegue manter. Já
fez cirurgia plástica para corrigir as bolsas debaixo dos olhos e Botox. Apara
a barba todos os dias, inclusive em feriados, e sempre carrega uma escova de
cabelo no carro. Vai à manicure para tirar a cutícula das unhas das mãos e dos
pés uma vez por semana. Numa sexta-feira de março, Odilon chegou ao salão de
beleza, cumprimentou a cabeleireira e uma cliente com bobes no cabelo e seguiu
para o espaço privado onde é atendido. Como estava com pressa, fez só a mão.
Depois
de mandar soltar e mandar prender nos mais de 40 anos no serviço público,
Odilon cogita agora fazer suas próprias leis. Há mais de dez anos, o juiz é
sondado por partidos para entrar na política. Há cinco, passou a refletir sobre
o assunto. Agora, com a aposentadoria, a ideia começa a ser amadurecida. Se
aceitar algum dos muitos convites, se candidatará para o Senado.
“Reconhecimento popular eu tenho, mas não sei se é meu perfil. A política é,
digamos assim, uma devassidão muito grande. De repente, a gente vai para lá e é
aquele covil, aquela coisa danada, um aborrecimento do capeta”, diz. Odilon
afirma que não iria para um partido grande, como PT, PSDB ou PMDB. Mas para um
nanico do chamado centrão, desde que seja coligado a uma sigla maior.
O
Senado seria uma forma de resolver sua segurança. Odilon, entretanto, trabalha
paralelamente em outras frentes. Planeja processar a União caso não consiga
manter sua escolta de forma amigável. Em 2014, enviou um ofício ao Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) para tratar do assunto, mas não recebeu retorno (O
CNJ não respondeu ao pedido de entrevista de ÉPOCA). Se tudo der errado, tem
uma alternativa mais inusitada: mudar-se para a Romênia, país de origem de seu
genro. Ele trocaria mesmo o calorão de Campo Grande pelo frio de lá? “Faz 20
graus abaixo de zero, mas meu genro disse que as casas têm aquecimento. Vou
para o gelo também, não tem problema. Ainda é melhor que ficar preso aqui”.

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